quinta-feira, 28 de julho de 2011

Ainda ontem...


A TV de seletor giratório que fazia o barulho ao trocar os canais, e quando o sinal ficava ruim, algum filho de Deus tinha que ir ao telhado/terraço e ficar girando até o sinal melhorar. Assistia ChacrinhaBozoSítio do Pica pau amarelo e ficava com vontade de ler a história no livro, mesmo sem saber ler ainda.

Andava de bicicleta sem capacete, sentia o gosto do chão duro, ficava com os cotovelos e joelhos ralados, mas chegava em casa, passava mercúrio cromo e volta pra brincadeira. Era a rua das crianças manchadas.

Descer a ladeira com carrinho de rolimã, feito com madeira de caixote de feira. O freio era a sola do chinelo, que as mães e pais ficavam curiosos com a rapidez com que eram gastos.

Que tal fazer "expedição" na mata próxima à cidade, catar sapos, girinos, grilos, encher os potes de maionese desocupados com insetos e guardar tudo no "laboratório", feito com galhos secos e um lençol velho, pego às escondidas da mãe pra não levar chinelada.

Arrumar taquara pra fazer pipa no quintal do vizinho, pulando a cerca, correndo do cachorro vira-lata, que ficava largado esperando a próxima perna pra mordiscar. Pedia goma na feira, pra colar o papel de seda, que a avó usava para copiar marca de pano de prato, e a linha, da máquina de costura da mãe, pra prender as varetas umas nas outras. Saía para o campo de futebol pra empinar a pipa e fazer concurso da que voava mais alto. Chorava quando o vento arrebentava a linha, ou quando alguém passava linha com cerol e a cortava. Enxugava as lágrimas e no outro dia fazia tudo de novo.

Fazia "arte", levava chinelada, apanhava de varinha de marmelo e chorava, mas no dia seguinte, estava lá, de novo, subindo no pé de jamelão, jaca ou manga, pra achar a fruta mais gostosa, sentar na forquilha da árvore, saborear a fruta sem preocupação com nada mais no mundo.

Ficava com febre "de garganta" por ter tomado banho de chuva, ou porque ficou muito tempo com a roupa molhada depois de tomar banho no rio. Chegava em casa e, como castigo, tinha que tomar remédio amargo e injeção, que o tio da farmácia aplicava. Reclamava, chorava de dor, mas tomava um prato de canja de galinha e já estava bom.

Ia para a escola, cortava caminho no quintal do vizinho, que tinha aquela tábua solta, pulava os trilhos do trem e chegava junto com a "Tia". Dava hora do recreio, ia para o pátio brincar de pique-pega, pique-parede, pular corda, queimada, pega-bandeira ou pelada. A molecada voltava pra sala toda suada, mas ficava de pé, quando a "Tia" entrava na sala, em sinal de respeito.

Vivi isso tudo, e muito mais. Estou vivo e aprendi a respeitar pai, mãe e professor. A criançada de hoje não sabe a textura da terra molhada de chuva ou da casca da árvore. Acha que leite é feito em fábrica e que professor é empregado. Fica trancado em casa com os cacarecos eletrônicos, pula e saracoteia, mas não sabe qual é o cheiro da grama orvalhada, ou da flor de café, quando esse entra na florada. Não conhece a suavidade de uma flor de laranjeira, ou a sensação de ver o mundo do alto do "pé de fruta". 

A geração de hoje não vive. Apenas finge.

4 comentários:

André N. Bueno disse...

Porra... bom pra caralho o texto, Fausto.
A nostalgia foi atraída logo no segundo parágrafo.
;)

Eu disse disse...

Fico feliz que tenha gostado!
Abraço!

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Tive um verdadeiro flashback na minha mente com esse texto. Muito bom.
Em Barcelona, na Serra, tem vários pés de fruta espalhados pelo bairro, mas a mulecada de hoje não sobe pra pegar fruta, porque a mãe diz que é perigoso.

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